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Um obreiro serve de guia para um grupo de turistas. Gente de todo mundo chega para apreciar a faz
Foto: Leonardo AntoniadisNum povo de França, a recreação de um castelo medieval implica uma original maneira de encarar a aventura: obreiros vestidos com roupas daquela época, e técnicas de construção, ferramentas e modos de trabalhar da Idade Média
Uma adivinanza: quem trabalha em melhores condições, um pedreiro do medioevo ou o obreiro especializado de uma fábrica de automóveis? Se nos referimos à estabilidade do emprego, a resposta é o primeiro. Enquanto a empresa automotriz planifica a supressão de 1000 postos de trabalho, apesar dos benefícios arrojados na primeira metade do ano, Adrien, Chantale e Bernard, artesãos na construção da Fortaleza medieval de Guédelon, podem contar com, pelo menos, a segurança de mais 17 anos de trabalho.
No centro de França, desde 1997, nas onduladas terras do departamento do Yonne em Borgoña, depois de um intervalo de 700 anos, erige-se pausadamente um novo castelo medieval, como aqueles que os senhores feudais e o rei Felipe Augusto (1165-1223) levantavam para proteger-se do inimigo inglês.
No bosque de Guédelon, do qual toma seu nome, média centena de trabalhadores, guiados por arqueólogos, medievalistas e arquitetos, empenham-se em construir as muralhas da que se converteu na maior atracção turística da região.
O castelo de Guédelon é um desses projetos que nascem do nada. Em 1979, Michel Guyot, um borgoñón "amante da pedra antiga", como ele mesmo se define, adquiriu e restaurou o castelo renascentista de Saint Fargeau numa localidade vizinha. A obra de reconstrução despiu os vestígios medievais do castelo inicial. Guyot não podia recuperá-los sem destruir o château mas recente. Este problema insolúvel deu nascimento à idéia de edificar uma fortaleza da Idade Média, como se tivesse sido descoberta. Para isso, o projeto deveria respeitar rigorosamente os cânones arquitetônicos da época. Um comitê multidisciplinario de especialistas no medioevo e de experientes em poliorcética (disciplina centrada na construção de bastões ou fortificações) se converterá no aval científico. Jacques Moulin, arquiteto em chefe de Monumentos Históricos, desenhará os planos de um castelo de talha média para a época.
Ao princípio considerado como excêntrico ou insensato, Guyot consegue convencer aos primeiros investidores e a obra começa num lugar estratégico, entre as localidades de Saint Sauveur e Saint Armand, em Puisaye. Ali, uma canteira e um bosque forneceriam os materiais básicos: as pedras para os muros, a argila para a argamassa e a madeira para armações e andaimes.
Uma vez despejadas onze hectares de terreno, erige-se a primeira pedra o 20 de junho de 1997. Vinte e cinco anos mais tarde se espera colocar a última, mas, que investidor esperaria um quarto de século para recuperar seus dividendos? Para dar-lhe uma existência imediata e obter uma parte do financiamento, mediando o pagamento de uma entrada, os iniciadores decidem abrir a obra ao público em 1998. Timidamente esperam umas 3000 visitas, mas esse mesmo ano, a realidade superará amplamente os cálculos mais otimistas: os curiosos serão 30.000. Internet e a informação de boca em boca farão o resto. Atualmente, Guédelon recebe 300.000 visitantes por temporada.
O projeto, qualificado como de "obra experimental", tem um rotundo sucesso ante múltiplos públicos: amantes da Idade Média, turistas estrangeiros, arqueólogos profissionais ou iniciados, maestros em procura de excursões inesquecíveis, aposentados otimistas, esperando satisfazer em Guédelon, fantasias e expectativas raras em nossa época.
Documentos históricos ou obras patrimoniais existentes são as fontes conferidas para certificar que os procedimentos empregados correspondem aos do século XIII. Cada gesto e cada técnica são rigorosamente estudados com os métodos da arqueologia para reconstruir de maneira idêntica o trabalho dos artesãos do passado. As ferramentas utilizadas são fabricadas nos mesmos ateliês de Guédelon. A obra funciona em autarquia: os ferreiros consertam e fabricam as ferramentas de talladores de pedra e carpinteiros. Estes últimos constroem os andaimes que sustentarão aos pedreiros, bem como os cordeleros fornecem os materiais necessários para atar as estruturas de madeira.
O trajeto desde Paris leva duas horas pela auto-estrada do Sul. Quando por trás de mim fica a praia de estacionamento, com seu parque de autos modernos, marcho impaciente pelo caminho que me levará ao forte, com a secreta sensação de que viajo pelo túnel do tempo.
Uma vez atravessada a fileira de árvores que esconde a obra, a primeira impressão é auditiva: ferreiros, carpinteiros, talladores de pedras não cessam de golpetear seus martelos sobre yunques e escoplos. Uma mulher jovem, de aspecto intelectual, conduz uma pesada carreta atirada por um percherón, que não pára de circular de um ateliê a outro, arcando gordas pedras cor siena, ou blocos em rocha calcárea, cuidadosamente talhados. Todos os trabalhadores portam túnicas medievais e nenhuma maquinaria ou ferramenta recorda a tecnologia atual. O quadro natural, os cheiros, o relincho de um cavalo, transportam-no a um ao passado. Mas alguns turistas, vestidos com sandálias desportivas sintéticas, bonés de beisebol e camisetas com publicidades estampadas, desbaratam a miragem.
Depois de onze anos de trabalho, a fortaleza vai cobrando forma. Neste momento os obreiros se concentram na sala senhorial. Um homem caminha para o interior de uma "caixa de esquilo", a grua utilizada no século XIII, para elevar ônus de 250 quilos até o torreón, que já conta com uns quantos metros de altura. Um segundo obreiro se apresta a acionar o mecanismo de freio em caso de acidente. Na obra se respeitam as consignas de prevenção, antigas e modernas. Os artesãos explicam, um pouco à defensiva, que se viram obrigados a fixar os andaimes com bulones metálicos, em lugar das cordas e lotas de couro como em seu momento. Devem calçar, ademais, pesados botines de segurança. A exceção feita aos cânones históricos porta seus frutos, porque até agora não se contabilizou nenhum acidente de trabalho.
Felizmente, a gestão do perigo não põe distância entre o visitante e o pessoal em atividade. Um pode subir aos andaimes e transitar por todos os recovecos da obra em germe. O diálogo com os obreiros se dispara fácil. Philippe, um estudante alemão, pergunta-me que quer dizer o "che" argentino. Mattias, de Toulouse, obreiro titular, encontra que "pedreiro", a palavra castelhana que define sua profissão, soa agradável ao ouvido. Florian de Grenoble, o maestro maior de obras, guarda um tom mais distante, mas não sem paixão. Explica-me como, graças ao archipéndulo (nível de plomada) e à corda egípcia de doze nodos (antepassado da calculadora), conseguem até agora, não ter mais de quatro centímetros de erro no conjunto da construção, o qual satisfaz as exigências da arquitetura moderna. Tomo fotografias e ninguém protesta, coisa verdadeiramente excepcional no território francês.
Pendurados dos andaimes não se encontram só profissionais. Kinga, Lucile, Marc, Sophie, jovens estudantes de arquitetura da Universidade belga de Saint Luc, enquanto cumprem uma pasantía obrigatória de obreiros artesanais, não estão isentos das tarefas mais pesadas, como a fabricação da argamassa, com cal e arenillas argilosas. Esta mistura, antepassado do cimento, demora dezenas de anos em secar de maneira definitiva, o qual dá uma grande elasticidade à estrutura do edifício.
Na baixa Idade Média, os castelos se erigiam para proteger ao senhor feudal e sua família. Ao começo do medioevo, continuando a herança romana, as fortificações consistiam em paliçadas e montículos de terra; mas uns séculos mais tarde, as incursões dos vikingos ou outros senhores feudais, impuseram novas estratégias de proteção, como os muros e torres de pedra. Participavam da construção até dez ofícios artesanais diferentes e a maior parte dos obreiros eram camponeses, os quais, a mudança de seu trabalho, recebiam o direito de proteger-se ao interior das muralhas em caso de ataque. Um castelo demandava entre 25 e 40 anos de construção, e a obra dava nascimento a um pequeno povo onde habitavam os artesãos.
Continuo minha visita e uns metros além, no lindero do bosque descubro um grupo de choças medievais. Bernard, o canastero, ocupa a moradia do camponês do século XIII. Seus grandes bigodes lhe dão o ar de um personagem de Astérix. Com tom afável, conta-me que antes se ganhava a vida como eletricista e em seus momentos livres, realizava seus sonhos de armero medieval. Com suas mãos callosas me tende uma espada de talha média e minhas bonecas crujen ante o peso quando trato de blandirla. No projeto de Guédelon, as armas não acordaram entusiasmo, razão pela qual Bernard seguiu uma formação em cestería na Escola Nacional de Faylbillot, em Haute Marne, única no gênero. Nos nove anos que leva trabalhando teve tempo de fabricar todos os canastros (os recipientes em plástico não fazem parte da paisagem), para arcar a argamassa, guardar as ferramentas que circulam na obra.
Minha surpresa aumenta quando no armazém que está defronte encontro a Pascale, a "tintorera", uma borgoñona em túnica medieval e óculos de última moda, que também me responde como se nos conhecêssemos desde faz muito. É que em casos assim, um acostuma encontrar-se com pessoal dissimulando mal seu fastio. Pelo contrário, ela parece divertir-se cozinhando a fogo lento todo tipo de plantas encontradas nos arredores para descobrir novas cores de tintura. A experiência de Guédelon é sem dúvida didática. Cada artesão, além de cumprir com seu trabalho, oficia as vezes de guia turístico, descobrindo ao visitante os segredos do ofício.
Na carpintaria, Antoine serrucha um duro bloco de carvalho enquanto suporta o calor e um presuntuoso turista que faz alardes de seus conhecimentos em dendrocronología. Jean-Marc, o cordelero, com olho travesso, mede o efeito provocado em seu público quando revela o nome latino da matéria prima para a fabricação de suas cordas: o cannabis.
O custo principal de Guédelon é o salário dos obreiros, já que as matérias primas se encontram no lugar mesmo ou em localidades vizinhas. O sucesso do projeto não passa unicamente por seu interesse turístico e cultural, senão que revitalizou numerosos ofícios ameaçados e gerado novos postos de trabalho estáveis, num período durante o qual muita gente perde seu trabalho por causa da globalização econômica.
Ao entardecer, os martelos se calam de repente e a obra se esvazia rapidamente. A jornada de oito horas chega a seu fim. No silêncio repentino me apresso para fazer a última panorâmica. Giro sobre meus calcanhares e me preparo para ser teletransportado de novo ao presente. Trago, desse passado efêmero que acabo de viver, a agradável sensação de que uma aventura original, e em aparência desgrenhada, possa ser possível.
Virtuoso cocktail de fantasia e de expectativas de nossa época com freqüência abandonadas, Guédelon conjuga interesses múltiplos. Uma experiência rica para quem procuram reunir turismo e emoção heurística, bem como para apaixonados de épocas passadas, ou, simplesmente, para aqueles que se emocionam ante uma obra onde as chaves mestras não são a rapidez nem a competitividade, senão uma aposta no trabalho a longo prazo, e onde o tempo se conta em gerações.
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