-->

MEU NOME É POLDY

Palomas

Sua obra mais conhecida, Contos para Verónica, é com dois milhões de exemplares, o segundo livro mais vendido do país depois do Martín Fierro. Esta é a história de como a escritura a manteve a bóie nas tragédias que viveu: a orfandade, a viudez e a morte de sua única filha
Por Leila Guerriero
Foto: Daniel Pessah


Poldy Bird já não fará presentes de aniversários. Depois de décadas de comprar -para tios e tias, para avós e primos- alguma de todas essas coisas que podem adquirir-se numa loja, que se envolvem com laço e que se pagam, Poldy Bird, escritora, argentina, começará a presentear antigas cartas, aquele portarretratos, essa caixa especial, as fotos da avó.

-Coisas que guardei com o passo dos anos. Desde agora, cada vez que alguém cumpra anos, vou-lhe a presentear alguma dessas coisas.

O departamento -dois quartos, banho, sala, cozinha grande- tem balcão, móveis escuros, um presépio armado desde dezembro, estampitas de santos, velas acendidas. Ela é, como suas fotos o indicam, loira. Veste de negro, a voz suave.

-Porque me disse: "O dia que eu me morra, que vai passar com tudo isso?" Os que fiquem vão-no atirar ao lixo.

-Bueno, muita gente guarda...
-Não. Quando desaparecem as mães, já ninguém guarda nada.

Nasceu em Paraná, mas viveu ali quarenta e cinco dias. Seu pai, Enrique Bird Mosconi, sobrinho do general Mosconi, militar, foi transladado a Buenos Aires depois do nascimento dessa menina que levava o mesmo nome que a mãe: Poldy.

-Nos chamamos Poldy as duas. É um nome muito comum em Áustria, e eu tenho ascendentes austríacos, franceses, irlandeses e italianos.

Poldy Bird, a mãe, era uma mulher de 18 anos, bonita, loira, professora de castelhano e de francês, que publicava colunas na revista Maribel sob o título Passa uma mulher. Teve, com Enrique Bird Mosconi, mais duas meninas, Marta e Noralí.

Poldy Bird, a filha, começou a escrever aos cinco: poemas, contos. E o 10 de agosto do ano em que ela teve 8 soou o telefone e atendeu seu pai.

-Disse: "Minha senhora?, como?". Dizem que minha mamãe correu o trem e que se foi para abaixo e golpeou com a cabeça na plataforma. Não sei se morreu pelo golpe ou pelo trem. Ao dia seguinte nos disseram: "Mamita se foi ao céu". E eu me enojei um montão. Disse: "Como faz isso se tem três filhas que a estão esperando?". Não a vi morta. Querés que te diga? Agradeço. Eu não me a lembro a minha mamãe morta. Depois disso nunca mais ninguém me arropó, nem... Nem nenhuma de todas essas coisas. Minha mamãe também era órfã: minha avó tinha morrido num acidente de auto quando minha mamãe tinha 11 anos.

-E seu pai...?

-Não, não me lembro. Voltou-se a casar.

Poldy Bird publicou, desde 1969, vinte e dois livros, dois dos quais venderam, entre ambos, três milhões seiscentos mil exemplares. Envolvidos em portadas rosas ou celestes -os desenhos de meninas ou adolescentes ou mulheres jovens se esfumam sobre um fundo de flores, espelhos e enredaderas-, os textos de Poldy Bird costumam estar escritos de "tu" e dizer coisas como esta: "Para não te chamar me mordo os lábios, aperto os punhos. (...) Tenés que crer que te afastei de meus sentimentos, que já não ocupás nenhum lugar em mim, que não foste mais importante que o que eu fui para vos". Ou como esta: "E não poderia explicar-te quando começou. Que dia, a que hora. Qual foi a primeira vez que em lugar de discutir disse «tenés razão». E fiquei calada. Quando foi a primeira vez que me enrolei no lençol para que não me acordasse essa noite; nem a vez que estreei um camisón impregnado de Dioríssimo e ele ficou dormido antes de que me metesse na cama".

Agora, editorial Do Novo Extremo publica um livro chamado O conto infinito que reúne duzentos de seus relatos, nos que há mulheres enfastiadas de rotina ou mulheres que sofrem sem dizer ou mulheres que crían sem vacilar (ou todas essas coisas juntas) e homens que querem a comida pronta ou homens que querem a mulher disposta ou heróis sinfônicos de peito celeste e mirada oceânica dispostos a achatar a suas fêmeas com innúmera crueldade (ou todas essas coisas juntas).

Por uma razão ou por outra -em mãos de machos perfeitamente rotineiros ou em mãos de varões rampantes perigosos- as mulheres, nos textos de Poldy Bird, sempre -sempre- a passam mau.

-Uma vida de merda. Que querés que te diga? A minha é uma vida de merda. Em realidade, eu escrevo porque se não estaria no Moyano. Numa cadeira.
Hamacándome.

De sua mãe, diz, recorda algumas coisas: chispazos, recordações que não sabe se inventou.

-Se tentava de riso. E escrevia coplas. "Há uma lua no céu, e há outra lua no rio. Qual será a verdadeira das duas luas que olho?" Eu lia e escrevia muito. Meu primeiro livro saiu quando tinha 26 anos, mas publicava desde os 16, quando mandei um poema ao diário A Imprensa e o publicaram. A mim sempre me passou assim. Nunca me fecharam a porta nem me disseram: "Não, chame depois". Comecei a publicar em Maribel, em Vocês. AOS 17 anos o conheci a Martín Renaud. Um dia me perguntou se não queria ir tomar algo, e nos casamos.

Dois anos depois, quando Poldy Bird tinha 20, nasceu sua filha: Verónica. E, desde o momento em que Verónica nasceu, Poldy Bird começou a escrever um livro que, seis anos depois, a faria famosa.

"Lhe tenho muita paciência. É absorvente, inquieta, pedigüeña; não me deixa um segundo em paz. Quando chego a casa, ao meio dia, depois do trabalho, se me cola e não se separa de mim por nada. E eu a deixo fazer. E a secundo. Que me tenha, que me tenha muito. Que se encha de mim. Que me respire. Que me toque. Que me obrigue a querê-la com toda minha alma e meu corpo também. Que me diga «mamita não te vás». Que me o diga para que eu fique", escreveu Poldy Bird em Contos para Verónica, esse conjunto de relatos, cartas, memórias e recordações da primeira infância de sua filha real, de sua filha pequena, de sua única filha, que foi a iniciação ao pranto de dois ou três gerações. Contos para Verónica se publicou em 1969, numa edição autogestionada de 20.000 exemplares que se esgotaram imediatamente. Em junho de 1971 publicou seu segundo livro, Contos para ler sem rimmel, um conjunto de relatos entre os que há uma carta para os meninos que não recebem brinquedos em Natal e outra para uma mãe que morreu sem conhecer o mar, entre outras coisas.

Contos para Verónica vendeu, até hoje, dois milhões de exemplares em setenta e oito edições. Contos para ler sem rimmel vendeu, até hoje, um milhão seiscentos mil exemplares em sessenta e oito edições. E, ainda que na contratapa de Contos para Verónica se lê uma frase do poeta nicaragüense Ernesto Cardenal ("Leste é um livro que faz mais formoso ao mundo"), e outra publicada no diário O País, de Montevideo ("Esta mulher cola onde dói. Esta mulher que escreve contos que fazem chorar é uma escritora de raça"), é difícil encontrar já não uma crítica favorável, senão uma crítica sobre os livros de Poldy Bird.

-O ano 70 foi de Poldy Bird. O 71 também. O 72, igual. Os livros se vendiam muitíssimo. E como me criticavam os demais escritores porque eu distribuía o livro nos quiosques e por então isso era um sacrilegio. O que diga a crítica, como dizem os garotos, chupa-me um ovo. Me preocuparia se dissessem "escreve mau". Mas escrevo muito bem. Minha prosa é como o água que se filtra, e que chega até o mais fundo. Não me importa muito o que a gente pensa de mim. Em realidade, não quero que pensem nada. Eu me saco as barrigas e se as dou. Depois que eles lhes ponham essas barrigas a quem queiram.

Em 1975 renunciou ao cargo de diretora da revista Vosotras para fundar, com seu marido, a editorial Orión, onde se publicou a si mesma, a Katherine Mansfield, a Arnaldo Rascovsky, a Antonio di Benedetto (que diz lhe escrevia cartas desde o cárcere, rabiscadas até o último rincão do papel), a Silvina Ocampo (de quem diz era muito amiga e que lhe preparava scones). As coisas iam bem e melhor. Comprou departamento em Rodríguez Peña e Alvear, quinta de fim de semana, casa em Ponta do Leste.

-De todas as coisas que alguém pode querer, eu as tive todas. Roupa, casas, viagens.

-E Martín?

-Trabalhávamos juntos na editorial.

-Mas inclusive nos textos mais autobiográficos ele quase não aparece.

-É que o pai na vida de todo mundo é como um personagem. Não é a mãe.

Verónica tinha 15 anos, a editorial Orión marchava bem, os livros idem. Uma tarde de junho, pleno inverno, Martín Renaud conduzia pela Panamericana para reunir-se, na quinta, com sua filha e sua mulher, mas se sentiu mau e desviou para a clínica Vicente López.

-Entrou, disse "me sento mal", e se caiu morto. Um enfarte em massa. Quando me avisaram me fui ao banho; Verónica se meteu comigo e me disse: "Não vamos fazer um escândalo porque a papai não lhe tivesse agradado". E nos contivemos. Dizem-te: "Ai, é uma prova de Deus". Até quando vai provar-me ? Está-me provando desde que abri os olhos. Todos os dias vai provar-me ? Por que não vai provar a outro? Eu já rendi todos os exames. Se não me sacava as coisas de adentro escrevendo, tivesse-me morto. Porque tudo o que lhe pode passar a um ser humano, a mim me passou. Mortes, doenças. O pior do pior.

Ficou viúva aos 36 anos. Verónica cresceu, casou-se, teve um filho de nome Alan. Poldy Bird seguiu editando, seguiu escrevendo: Contos com nevoeiro, Contos de amor, Novos contos para Verónica, A nostalgia, O país da infância, Palavras para minha filha adolescente, Verónica cresce, Borboletas encerradas em mim, É tão longo o esquecimento, Coração sem chave, Brilho de lágrimas, Cartas embaixo do travesseiro, Morrer entre teus braços, Passa uma mulher.

Mas em 2001, quando a crise arrasou, teve que fechar a editorial, vender departamento, mudar-se a este, que aluga, que ainda não pode, não quer sentir seu.

"Oi, fala Poldy. Por favor, comunicate comigo. Temos que suspender a entrevista que tínhamos combinado para esta semana porque passou algo terrível." Oito meses atrás, o 26 de outubro de 2008, a voz de Poldy Bird na secretária eletrônica da Nação suspendia, assim, a entrevista convinda para essa semana. Quando, horas mais tarde e também por telefone, Poldy Bird explicava os motivos dessa suspensão parecia serena. "Foi um ataque cerebral. Uma morte súbita. Deixemos passar um tempo. Eu te chamo."

O dia anterior, 25 de outubro de 2008, a filha de Poldy Bird -a única filha de Poldy Bird: Verónica Renaud- tinha morrido.

Agora, abril e 2009, recorda aquele outubro, esse chamado.

-Te chamei eu para avisar-te e suspender a entrevista?

-Si.

-Claro. A quem vais fazer chamar para uma coisa assim?

-A uma amiga?

-Não. À gente não lhe agrada fazer essas coisas. Esse dia Verónica esteve cá, com Alan. O se foi a casa de um amigo. Ela se foi a sua casa e se morreu. Não procuremos coisas justas. Ninguém nos prometeu que a vida ia ser justa. Vení a meu estudo, quero-te mostrar as cartas.

As cartas começaram a chegar quando o fato se fez mais ou menos público. Quando Mirtha Legrand o mencionou em seu programa, quando a diretora da revista Mía, onde Poldy Bird publica um relato por semana, mencionou-o no editorial. No estudo há uma biblioteca, um computador, uma escrivaninha coberta de papéis, mais estampitas. Poldy Bird se senta, passeia pelos mails, não pestaneja quando, aberrações cibernéticas, o remetente de Verónica Renaud, sua filha morta, bate ainda no messenger, enche a casinha de mails.

-Esta carta me a mandou Ricardo Montaner, que é fanático meu. Leela.

A carta diz assim: "Querida, por que tu? E quem ia contar-nos da dor com tanta realidade e verso, se não tu? E quem poderia dar-lhe forma de poesia a uma lágrima perdida, se não tu? E quem melhor para Deus do que tu para falar-lhes aos comuns da dor do que ele sentiu o dia que viu a seu filho morrer por nós? Por que tu? Porque no meio da devastação tu segues sendo preferida". -Preferida.

Sou a preferida para encher-me o saco. Como que Deus me dá, e me tem que sacar o que me dá. No balcão, o outro dia, cresceu uma plantita. Uma enredadera flaquita que largou uma florcita que durou um dia. E eu pensava: até esta planta de merda teve mais oportunidades. Deu uma florcita. Ela, Verónica, que tinha tantas coisas para fazer em sua vida, como criar este filho, não teve oportunidade. Por que não me morri eu? Ah, cá está. Mirá, isto o escrevi para Verónica quando ela se morreu.

Abre um documento. Soa uma música de viola. Lee:

-"Tudo o alumia seu nome. Porque ela usava zapatitos de charol com médias brancas..."

De repente, Poldy Bird se encolhe como se algo a empurrasse contra o andar.

-Leelo vos.

-Lhe parece?

-Si. Por favor.

O texto é singelo. É breve.

A mulher soluça quando escuta, mas não deixa de escutar.

Faz muitos anos que sigo a Poldy, esses anos em que rimmel de todas as cores, empastaban minhas pestanas...se desejam podem ler UM PRANTO AZUL de "Contos para ler sem rimmel".

0 CA CHORROS:

:)) w-) :-j :D ;) :p :_( :) :( :X =(( :-o :-/ :-* :| :-T :] x( o% b-( :-L @X =)) :-? :-h I-)

Gracias por comentar

 
Ir Arriba